O Catador de sonhos
Aquele homem podia se chamar Pedro, José, Antônio, mas há momentos na vida que nomes são totalmente desimportantes.
Quando chegava em casa, debaixo de uma chuva torrencial, naquela tarde de sábado de dezembro de 1998, já levemente alcoolizado, vindo de um churrasco de formatura de meus alunos do Colégio Nobel, em Maringá, no Paraná, vi um homem catando papéis velhos de um container de lixo, desses que costumam estar na frente dos prédios. Era ele o catador sem nome. Mas de presença inequívoca.
Entrei na garagem e tomado de um remorso enorme, de uma culpa existencial, de um vazio por dentro, desses que todos somos assolados vez por outra quando nos deparamos com a miséria humana. Pensei que pudesse tomar o elevador, sem maiores preocupações, afinal não havia sido eu quem colocara aquele homem na situação em que se encontrava. Não pude, no entanto, subir nem um degrau da escada, nem esperar o elevador, nem me mover para nenhum lugar que não fosse na direção dele.
Senti muita culpa de, nesse dia de descanso, eu estar feliz e embriagado, indo para a cama em plena tarde, aproveitar a boa chuva que caía e saber que aquele homem estava lá fora, trabalhando e sabe-se lá quanto tempo iria permanecer assim. Pensei que pudesse comprar minha consciência dando algum dinheiro para ele.
Elaborei um pequeno plano para não ofendê-lo, já que não era um pedinte, era apenas um homem pobre trabalhando para ganhar seu sustento e, talvez, de sua família. Retirei uma nota de dez reais da carteira, molhei no chão para fingir que havia encontrado e então poderia dar a ele, como se tivesse sido ele a encontrá-la.
Parei diante do homem e com voz dissimulada perguntei-lhe: “o senhor é um homem de sorte?”
Sem parar de fazer seu trabalho, o estranho apenas me olhou e disse: “sim, acho que sim. Eu cato papel velho na rua para sustentar minha família e todos os dias eu consigo papel suficiente para comer e morar. Ganho mais ou menos uns oito reais por dia. É o suficiente.”
Quando ele me disse que tinha sorte, eu pensei em mim mesmo e na vida que levava, muitas vezes reclamando por nada e de nada. Contei que havia achado aquela nota, que inclusive ainda estava molhada e que não achava certo que ela ficasse comigo, porque não precisava dela e então resolvi dar a ele, e dei.
O homem pegou o dinheiro, com uma alegria natural e me disse o que nunca esperei ouvir: “viu como sou um homem de sorte. Hoje lá em casa vamos comer até carne!”
Aquele homem podia se chamar Pedro, José, Antônio, mas era apenas um homem, um catador de papéis, que, hoje, me ensinou a ser um catador de sonhos.
4 Comments:
Nailor
É lindo o jeito como você brinca com as palavras...palavras que muitas vezes nos soam tristes ou pesadas como catador, ferreiro...De repente surge o poeta e assopra borboletas, desabotoa rosas, borda saias velhas com pássaros e borboleta...e agora cata sonhos...
Saiba que adoro seus textos, mas " O homem que ferrava almas" e agora " O catador de sonhos....são de uma beleza e ternura indiscutíveis. Acho que eles falam muito de você, da maneira como vê o mundo...de forma muito, muito singular.
Um grande beijo em sua alma,
Cyntia Akamine.
Obs: Para quem amou este, procurem ler também " O homem que ferrava almas" .
Um grande beijo em sua alma,
Cyntia Akamine.
Nossa...(!!!!)
Confesso que me emocionei ao ler esse texto.É INCRÍVEL,ESPETACULAR, SURPREENDENTE e INCOMPARÁVEL a maneira como você escrevi...como você brinca com as palavras!!!
O meu passatempo na internet é ler suas histórias, uma vez que elas nos refletem tanto angústia, quanto alegria.
Se você permitir serei também uma catadora de sonhos...
Mayara Keiko Imado
Professor, gostaria muito de ler o texto mencionado pela Cyntia Akemine: "O homem que ferrava almas".
Não encontrei no blog...se puder manda em meu email:mayara_key@hotmail.com
agradeço desde já.
Beijos,
Mayara Keiko Imado
Já deparei com situaçoes semelhantes!
Todas as tardes faço caminhada em volta de um clube vejo os associados do clube chegando em seus carros luxuosos e vejo os catadores de "lixo"..muitas vezes nao posso fazero mesmo dar um dinheiro,mas fico pensando na luta dessas pessoas para viverem!
Hoje quando jogo um pouco de leite fora,um pedaço de carne começo pensar quantos dez reais uma pessoa nas condiçoes dessa que você teria que encontrar!
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