Ana Maria contra Ana Maria
Ana Maria apareceu cedo no cenário local. Aos 14 anos já era líder estudantil de certo renome, assombrando as autoridades constituídas do Instituto de Educação com sua retórica refinada e sua convicção de propósitos. O ano era propício, 1969, AI-5, repressão, deportações, censura, bipartidarismo, motivos de sobra para uma militante da esquerda juvenil alcançar espaço e firmar-se como formadora de opinião.
Anos mais tarde, já na universidade, infiltrou-se com certa facilidade nos centros acadêmicos e logo cravou sua marca, já que seus companheiros, quase sempre, estavam mais preocupados com álcool e sexo. Sua bandeira era liberdade ampla. Estava, contudo, mais a favor da causa feminista, sua mais nova paixão. Pregava que a mulher deveria alcançar o seu espaço nesse mundo machista, onde os homens querem as mulheres submissas e coisificadas. Mulher livre, mulher livre, mulher livre, essa era agora a sua bandeira e seu mote.
Sua carreira de ideóloga do feminismo chegou ao apogeu do status do interior: editou dois livros, publicou matérias em jornais de grande circulação, fez palestras na capital, enfim, senão era a maior expressão nacional, era bem conhecida para receber muitos aplausos em chás beneficentes.
Nessas andanças ativistas conheceu Ernesto Heminguello, um estrangeiro, também feminista e que pela identidade de proposta seria o homem ideal para se casar. Casaram-se e foram o casal modelo para feminismo científico. Como era de se prever o casamento transcorreu científica e ideologicamente perfeito. Um verdadeiro exemplo para os seminários sobre o assunto.
Ernesto via as mulheres como donas dos próprios destinos e não aceitava que os homens as conduzissem como numa disputa frenética e animalesca para saber quem ficaria com a melhor parte da caça. Ernesto lhe confessou que se sentia mal com o eterno jogo velado de gato e rato entre homens e mulheres. Gostava dos que, como ele, haviam entendido o espaço feminino ou dos que assumiam publicamente jogo dos homens. Ele implicava com leiloeiros; apreciava mais os falsários. Sabia que as mulheres incautas pulariam das mesas do leilão masculino facilmente para as garras dos truculentos, por isso gostava dos que ludibriavam por achar que causariam menos mal. Via nesse caso o amor com um estelionato menos prejudicial, pois sabia que nem todas as mulheres estão preparadas para a verdadeira liberdade.
Ana Maria não tinha propriamente um casamento, mas um ensaio sobre o feminismo romanceado. Ernesto era impecavelmente fiel a seus princípios libertários.
Ana Maria, de surpresa, conheceu Roberval. Um homem enérgico, de pouca conversa, machista e autoritário. Mulher para ele era na cama e na cozinha. Toda mulher era um motivo de bílis.
No primeiro encontro, de súbito, agarrou Ana Maria e beijou-a a força. Ela ficou sem ação, não estava acostumada a ser tratada assim, mas, estranhamente, ficou encantada também. Ela protestou, mas era um beijo, um beijo de verdade. Roberval riu. Ela protestou e se sentiu beijada, pela primeira vez, verdadeiramente beijada.
Daí por diante, contrariando tudo, viu muito Roberval. Quando ele queria e era bom. Quando ele mandava e era humano. Quando ele a agarrava com força e vontade e era humano, demasiado humano.
Ana Maria amava Ernesto. Ana Maria seduziu-se pelo maravilhosamente grosseiro Roberval. Ana Maria queria Ernesto, Roberval.
Ana Maria armou.
Ernesto chegou em casa mais cedo e encontrou Ana Maria e Roberval em sua própria cama. Parou, observou em volta, cumprimentou os dois, beijou sua mulher na testa, vestiu o pijama e pediu a Roberval que fosse mais para o meio da cama, desculpou-se pelo incômodo e dormiu. Ernesto era convicto.
Estranhamente nunca mais ninguém ouviu falar de Ana Maria.